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Júlia Severo, acadêmica de direito na Unisc, acredita que a representação é essencial para quebrar a estrutura racista da sociedade

 

O racismo estrutural presente na sociedade brasileira não é novidade. O país foi construído com bases na escravidão negra que perdurou, em torno de, 350 anos. Depois, a abolição assinada em 1888 decretou uma liberdade ilusória, já que pessoas negras passaram a sobreviver às margens de uma sociedade que nunca deixou de ser escravocrata. Sem dinheiro, terras ou bens, a população negra começou a lutar mais uma batalha, cujas lutas se estendem até hoje, por visibilidade, direitos e justiça.  

Para reforçar a importância da representatividade negra em espaços comumente ocupados pela branquitude, a acadêmica do curso de Direito da Unisc, Júlia dos Santos Severo, explica sobre o racismo estrutural, transmitindo suas percepções e conhecimentos, em uma conversa que tem muito para ensinar. Afinal, o racismo também está na invisibilidade e na ausência das pessoas negras em determinadas esferas sociais e a universidade deve ser um local de debate na busca por uma educação antirracista.

 

Julia, enquanto mulher negra, qual foi a importância de ingressar na universidade?

Não fui a primeira mulher negra da minha família a ingressar na universidade, me antecedem neste feito a minha mãe, tia e primas. Compreendo que a importância do meu ingresso deve começar a partir delas e da coletividade na qual eu estou incluída. Afinal, o meio acadêmico é majoritariamente ocupado por pessoas brancas e quando pessoas como eu, minha mãe e minha tia, ingressamos nestes locais, quebramos um padrão. Desde que comecei a cursar Direito, em 2016, busco encontrar meu papel enquanto mulher negra no meio acadêmico e no meio jurídico, que também é composto em sua maioria por pessoas brancas. Eu reconheço meu privilégio de ter a possibilidade de estudar em uma universidade particular, sei que existem milhares de mulheres negras que não vivem essa realidade. Por isso, tento usar o espaço que ocupo como ferramenta de resistência, para fazer ecoar a minha voz e as voz dos meus. Acredito que esse seja um dos fatores mais importantes do meu ingresso no meio acadêmico.

 

Pode me falar mais sobre o porquê da necessidade de representatividade negra em espaços como a universidade?

Bom, devido à falta de representatividade da população negra nesses espaços, a sociedade se acostumou com um contexto em que negros são tratados e vistos de modo hierarquicamente inferior. Isso acontece principalmente nas atividades realizadas, então, causa espanto quando pessoas negras ocupam posições diferentes das pré-estabelecidas na estrutura social.  Entendendo isso, a representatividade se torna uma ferramenta para que a população negra passe a se ver e se conhecer mais em todos os locais.

Tenho produzido alguns textos nas redes sociais com essas reflexões, como forma de fazer valer minha luta. Um desses textos é fruto do Livro Na Minha Pele, do Lázaro Ramos, que cita: “Inundar uma criança com referências positivas sobre seu lugar no mundo é o primeiro passo para aumentar sua autoestima. Sempre que uma criança admira as características físicas e a personalidade de um personagem, se identificando com ele, ela aprende a gostar um pouco mais de si mesma.”. É isso. Fazendo com que grupos minoritários ocupem estes setores da sociedade, se criam as chamadas personalidades emblemáticas, para que estas sirvam de exemplo às próximas gerações, demonstrando que estas podem e devem ocupar aqueles lugares. Por exemplo, ver uma mulher negra ocupando um espaço como o acadêmico gera representação para outras mulheres negras, que veem ali uma semelhante, de modo que compreendem a importância daquela estar ali, e fazer deste um local para debate, diante as desigualdades ocasionadas pelo racismo.

 

 

 

Sobre o racismo estrutural que descreveu, como ele se manifesta no cotidiano?

O racismo estrutural é parte intrínseca da sociedade, que normaliza os fatos decorrentes dele, ao ponto de reduzir a condenação pública para ofensas, atos e práticas racistas. Não é à toa que existe naturalização da morte de pessoas negras. O Brasil é um país desigual e é fácil identificar a desigualdade entre brancos e negros no meio político, econômico e jurídico. Isso é consequência de um processo que proporciona a discriminação de forma sistemática, dia após dia.  

Um exemplo são as operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro, que acabam sempre tendo como vítima corpos pretos. Também, o Atlas de Violência de 2019 mostra que 75,5%, das pessoas mortas por homicídio em 2017 eram negras. Além da exclusão, o racismo estrutural contribui para um genocídio não declarado contra a população negra.

 

"É preciso compreender o racismo estrutural, como fruto do período escravocrata e pós escravocrata no Brasil, para compreender o que é racismo estrutural, de que forma ele age e como você sente no que diz respeito a ele."

 

Já vivenciou alguma situação de racismo?     

Como mulher negra inserida em uma sociedade, estruturalmente e institucionalmente racista, diariamente somos alvo, ainda que indiretamente. Enfrentar o racismo é uma luta diária. Como exemplo, utilizo a situação de que pessoas negras não fazem compras sozinhas em mercados ou no comércio, pois, sempre estamos acompanhados dos olhares atentos dos seguranças, que temem qualquer ato nosso. Voltamos aqui ao racismo estrutural e em como ele age, ainda que de forma velada, considerando a marginalização que recaí sobre os corpos negros que são colocados como suspeitos, mesmo que isso não seja dito explicitamente.

 

Considerando o contexto do preconceito estrutural e por vezes velado, por que debater o racismo se faz tão importante?

As últimas décadas representaram um período de expressivas mudanças no quadro tradicional de debates sobre a questão racial no Brasil. Mas, é preciso muito mais, considerando o cenário vivenciado pela população negra, onde nos deparamos com a matança desenfreada de jovens negros, por exemplo. O falso argumento da democracia racial, que diz que as desigualdades do país são fruto de questões socioeconômicas, enquanto na verdade a situação tem origem em dimensões socioculturais e étnico-raciais, sustenta diversos argumentos racistas.

Compreendendo que a vulnerabilidade da população negra é existente, é preciso questionar quais são as causas e as consequências da situação. São diversos os fatores que produzem a violência letal na sociedade, mas, inegavelmente a cor é um condicionante expressivo e que carrega consigo tamanha marginalização. A prova disso são os índices que demonstram negros como maiores vítimas de morte violenta. Precisamos que o racismo passe a ser discutido com mais frequência, por que só assim teremos o reconhecimento de que existe racismo estrutural e institucional no Brasil. Aí, se torna possível buscar formas de combate às desigualdades e ao genocídio da população negra.

 

Como as instituições e as pessoas brancas podem auxiliar com o fim do racismo?

O atual momento é de comoção internacional após George Floyd, homem negro, ter sido morto por um policial. Então, antes de falar sobre como as instituições e as pessoas brancas podem ajudar no combate ao racismo, acho importante pontuar alguns fatos.

 

"No Brasil, existe um genocídio não declarado contra a população negra, fato que passou a ser normatizado devido ao racismo estrutural e institucional. Aqui, há muito tempo e de forma constante, existem ações policias que resultam na morte de pessoas negras."

 

São muitos casos divulgados na mídia e, logo depois, esquecidos. Como, por exemplo, os 80 tiros disparados pelo exército que mataram o músico Evaldo; a bala perdida que acertou Agatha pelas costas enquanto ela voltava para casa com a mãe; ou a recente morte de João Pedro que foi alvejado por 70 tiros dentro de casa junto com os primos. São décadas da população negra sendo alvo de homicídios, a ponto de poder dizer que há cada 23 minutos um jovem negro é morto no Brasil.  Há muito tempo sofremos com a violência policial não gravada, mas que igualmente acaba com nossas vidas.

Por isso, além de postagens como Vidas Negras Importam, as instituições e as pessoas brancas devem estar dispostas a ouvir quem sempre foi oprimido e é alvo diário do racismo. Devem estar dispostas a estar na linha de frente e compreender de que forma a construção da história e o racismo atuam na vida dos negros. O antirracismo são ações, movimentos e políticas adotadas ou desenvolvidas para se opor ao racismo. É necessário que instituições promovam debates sobre o racismos, seguidos de ações voltadas para o seu combate.

 

A temática da tua monografia aborda o racismo estrutural. Como foi a decisão para desenvolver a pesquisa?

Quando escolhi a temática da minha monografia eu sabia que iria me ressignificar enquanto mulher negra. Então, com orientação da Professora Caroline Bittencourt, escrevi A naturalização das desigualdades e o racismo estrutural: dos direitos formais ao genocídio informal da população negra e as políticas públicas de enfrentamento. Além de um trabalho para conclusão do curso, foi um ato de resistência e de protesto.

Foi um trabalho de preto para preto. Uma iniciativa para apontar de que forma o racismo atua na naturalização das desigualdades e no homicídio da população negra. Creio que a luta não está perto do fim, mas quero estar nela enquanto tiver forças e espero poder contar não só com irmãos pretos na luta antirracista, mas também com os demais, pois, não é uma luta de um contra outro, mas uma luta de todos contra o racismo.

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"A partir do espaço que ocupo posso ser uma ferramenta de combate na luta antirracista."


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