A escolha pelo tema da tese foi para evidenciar a importância dos saberes indígenas para a sociedade e para uma educação mais humanizada
A Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) realizou a defesa de tese do primeiro indígena a doutorar-se na Instituição. Onorio Isaias de Moura concluiu o doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e defendeu a tese cujo tema foi “Jamré, o princípio de educação Kaingang: a recriação da vida de Kamé e Kanhru”. Ele teve como orientadora a professora Ana Luisa Teixeira de Menezes.
Onorio é formado em Relações Públicas na Universidade Federal do Pampa (Unipampa), mestre e doutor em Educação pela Unisc. Nasceu na terra indígena de Nonoai e, segundo ele, a escolha pelo tema da tese foi para evidenciar a importância dos saberes indígenas para a sociedade e para uma educação mais humanizada, considerando a invisibilidade da história e da cultura dos povos indígenas, suas sabedorias, filosofias e ciências milenares na sociedade e na academia.
“Além disso, formar uma base reflexiva sobre a filosofia Kaingang, uma proposta de fortalecimento da narrativa ancestral como ciência perante a academia, algo que outros autores indígenas já teorizam e problematizam em relação aos modos de educar. A partir desses elementos, de forma intercultural, contribuir com a academia a partir da pesquisa, trazendo inovação de pensamentos”, acrescenta.
A pesquisa foi desenvolvida ao longo dos 4 anos de doutorado. Onorio pesquisou, tanto na terra indígena de Nonoai, em aldeias indígenas próximas, como na aldeia Foxá de Lajeado, e na própria Unisc, com base teórica/metodológica. Também, a partir de bibliotecas vivas que são os Kófas (velhos), anciãos e sábios Kaingang. Como principal referência e inspiração teve o avô, Kerãnh Nisio da Silva, que tem mais de 100 anos de idade. Ainda, mais de 10 interlocutores de forma direta e indireta. “Isso ressaltando a importância do saber coletivo, apesar da tese ter um autor principal, as filosofias e os pensamentos são de um saber coletivo do povo Kaingang.”
O trabalho propõe ampliar espaços para reflexões e teorizações, na pesquisa e na produção científica acadêmica, por meio de uma relação intercultural de colaboração, compartilhamento e de troca de saberes, evidenciando e efetivando os conhecimentos Kaingang. “Os modos indígenas de fazer ciência ainda são timidamente experimentados na academia, um espaço de ensino altamente influenciado pelo pensamento europeu, colonizador e hegemônico. Apesar de toda a influência e interferência dos colonizadores, visando introduzir, integrar e assimilar, no sentido de dissolução dos povos indígenas, estes têm firmado espaços fundamentais para a ciência moderna.”
A filosofia Jykre (pensamento), segundo Onorio, é um exemplo disso, quando traz em seu bojo a noção de oposição e complementaridade. “Como indígena pesquisador e acadêmico, meu interesse foi aprofundar os elementos da cultura, a forma como o povo Kaingang vive e pensa, indo ao encontro de outros modos de coexistir, resistindo ao pensamento colonizador e dominante da sociedade não indígena. Esse modo de pesquisar é uma forma de existir e (re)existir, um movimento de reescrever, reconstruir e ressignificar a própria história, a verdadeira história, sem a intermediação de pesquisadores e antropólogos não indígenas, sem a tutela do passado e que ainda se reflete na consciência das pessoas nos dias atuais, principalmente na pesquisa científica.”
Fotos: Bruna Lovato/Unisc
Professora Ana Luisa e Onorio
“Nossa geração continua lutando pelo reconhecimento e pelo respeito, como povo e sujeitos de direitos”
Onorio vem de uma família Kanhru do povo Kaingang. Iniciou a trajetória escolar aos 7 anos de idade. Em meados dos anos 2000, a família mudou-se para a terra indígena de Serrinha, no Norte do Rio Grande do Sul, em busca de melhores condições de vida. Lá frequentou o Ensino Fundamental na Escola Estadual Indígena Tãnhvê Krégnso, na comunidade Capinzal, onde aprendeu um pouco da escrita da língua materna e foi alfabetizado na Língua Portuguesa. “A comunicação com a minha família é feita somente na Língua Kaingang, a primeira língua que aprendi na infância. Na escola, comecei a aprender a Língua Portuguesa, minha segunda língua, e que, até agora, ainda não sei falar muito bem. A comunicação na escola era feita na língua materna, pois a maioria dos professores e funcionários era indígena, facilitando a manutenção da língua.”
Da educação básica à universidade, o ingresso na graduação foi de descobertas, desafios, muita reflexão e escolhas. Pensando no futuro profissional, foi colocando na balança as questões culturais do seu povo, os ensinamentos e os movimentos de lutas de sobrevivências e resistência e do reconhecimento como um povo dos ancestrais, para que a sua geração pudesse estar viva. “Essa luta parece interminável. Os nossos antepassados encontram-se na luta desde 1500 simplesmente para viver e preservar seu modo de vida de forma autônoma. A nossa geração continua lutando pelo reconhecimento e pelo respeito, como povo e sujeitos de direitos.”
Da graduação ao mestrado e ao doutorado, foi tomando consciência do apagamento da história do povo indígena e, consequentemente, da própria história, segundo ele, a partir do roubo da consciência que o povo Kaingang viveu e ainda vive e sofre. “Com o ingresso na Universidade, estamos no processo de reverter e de minimizar esse apagamento, ou tomando essa consciência de volta, principalmente pelos indígenas mais jovens.”
Na compreensão sobre o roubo da consciência, Onorio tem como orientação a experiência própria. Quando começou a frequentar a escola dos fóg (não indígenas), era chamado de “índio”. Na época, não compreendia esse termo como um processo de desqualificação ou um termo preconceituoso. “Isso foi colocado na minha cabeça, no meu pensamento, no meu corpo e na consciência, assim como de outros parentes Kaingang: a palavra “índio” tem um sentido pejorativo que não nos representa, desconsidera nossa história, cultura e cosmologia. Mesmo vivendo em uma comunidade Kaingang, percebi que o pertencimento a esse povo foi tirado de mim, mesmo falando a língua materna, praticando os costumes, as brincadeiras etc. O processo de educação escolar dos fóg ensinou que sou índio, introduziu essa palavra na minha consciência.”
No Ensino Superior foi percebendo algumas questões interessantes com relação ao termo “índio”. Ele se apresentava como “índio” em diversos espaços de fala da Universidade, pois foi ensinado assim. No entanto, escutava murmurinhos pelos corredores com tom de surpresa: “olha lá, os índios!”, “o que esses índios estão fazendo aqui? Não era para estarem na selva?”.
Essas situações incomodavam e Onorio começou a questionar a própria existência e a história. “Como assim, índio? Mas não sou índio? São reflexões e questionamentos que passei a fazer. Sou um Kaingang, membro de um povo, da marca Kanhru, conselheiro do povo. Tenho Tavendy como nome próprio, mesmo que o cartório não tenha aceitado registrá-lo. Sou um Kaingang e levo comigo a cosmologia, a cultura, a filosofia e a epistemologia do povo Kaingang.”
Assim, começou a desconstruir o processo de apagamento da história do seu povo e compreender o preconceito. “Nós, do povo Kaingang, não temos preconceito com os outros povos, nem com os não indígenas, porque a nossa formação pessoal e coletiva é diferente, os fundamentos da nossa educação estão nos princípios de amor incondicional pelo nosso oposto, é o que chamamos de Jamré, teorizado na tese.”
Sobre os estudos no mestrado e doutorado, Onorio acredita que contribuíram para ampliar os espaços ocupados, refletir e divulgar a filosofia e a epistemologia Kaingang, por meio de sua história, cultura e cosmologias. “Considero-as importante na reescrita da história do Povo Kaingang no Vale do Rio Pardo e no Vale do Taquari, por onde transito atualmente, em virtude da localização da Universidade e das aldeias indígenas próximas.”
Onorio Isaias de Moura